
Quirino tem curso técnico em hotelaria, trabalhou em restaurantes e foi casado antes de morar nas ruas de São Paulo, Belo Horizonte e Sorocaba; hoje ele vive uma situação financeira estável em Torre de Pedra. Foto: Paulo Andrade
Márcio Quirino tem 64 anos de idade, morou 14 anos nas ruas (divididos entre Sorocaba, São Paulo e Belo Horizonte), livrou-se do alcoolismo há 29 anos. Quando jovem, formou-se técnico em hotelaria e prestou diversos serviços nessa área. Após penar por anos debaixo de marquises, apegou-se a pastorais de moradores de rua. Em seguida, juntou-se ao Movimento dos Sem Terra (MST). Hoje é catador de recicláveis e tem casa própria. “Se alguém der uma chance, alguém muda. Mas o primeiro alguém tem que ter vontade política verdadeira”, afirma.
Atualmente, além de recolher e vender recicláveis “de forma independente”, Quirino profere palestras sobre direitos dos moradores de rua. Para ele, a prática de faxina ou higienização social não pode ser chamada de “humanização”, como faz a Prefeitura de Sorocaba.
Quirino voltou à cidade nesta terça-feira (4) e conversou com o Portal Porque. A entrevista aconteceu antes de uma reunião que ele teve com membros da Comissão de Direitos Humanos da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Sorocaba, que teria como tema o decreto federal 7053/2009, que instituiu a Política Nacional para a População em Situação de Rua.
Segundo o ex-morador de rua, Sorocaba não pratica esse decreto, que prevê moradia provisória, qualificação, transferência de renda, entre outras políticas públicas para essas pessoas. “São Paulo e Belo Horizonte, onde também morei, colocam em prática o decreto assinado pelo Lula, mas Sorocaba não”, critica.
“O curioso é que fui presidente da Associação de Moradores de Rua de Sorocaba e passava informações com frequência sobre as condições dessa população para o então vereador Rodrigo Manga. Mostrava como funcionava o SOS, as necessidades. Ele usava isso na tribuna e na campanha. Hoje que ele é prefeito, faz tudo diferente”, denuncia Quirino.
Para ele, o prefeito Manga diz que faz humanização no acolhimento, “mas, repito: hoje ele é daqueles que faz política de higienização social contra pessoas nesse tipo de vulnerabilidade”.
Nessa época, segundo Quirino, além de Manga, os vereadores que mais o procuravam para saber sobre a situação dos moradores de rua eram Fernanda Garcia (Psol) e Péricles Régis (Podemos). “Também tive algumas conversas com a vereadora Iara (PT). Foi principalmente no período em que [José Caldini] Crespo era prefeito.”
Sinais de segregação
“Atualmente, em Sorocaba, o período de acolhimento dessa população é curto, de 7 dias, há relatos de abordagem violenta, pessoas mandadas embora da cidade, internadas compulsoriamente, envolvimento sem transparência de comunidades terapêuticas que visam lucro, instituições dopando internos sem receita médica”, disse um advogado presente à reunião com Quirino que, por sua vez, completou: “É uma indústria que fatura com a miséria humana.”
De acordo com um morador de rua entrevistado pelo Porque em dezembro de 2022, a gestão Manga tem como meta dificultar a existência de moradores de rua pois, além de sequestrar seus pertences, está intimidando proprietários de restaurantes que doam alimentos. “Ele mandou avisar que vai multar e até fechar o restaurante”, afirmou Gerson, que tem raízes na colônia ítalo-espanhola da Vila Haro e fez dois anos de Química na OSE. Veja link no final desta matéria.
Abusos e estudos
Quirino contou à reportagem que sofreu abuso sexual duas vezes quando tinha 9 anos de idade. “Uma vez por um amigo de meu pai e outra por um primo mais velho.” Ele afirma que esse trauma o consumiu até os 40 anos de idade, quando buscou ajuda profissional. “Fiz tratamentos psicológicos tanto na PUC mineira quando na PUC de Sorocaba”, lembrou-se.
O pai de Quirino trabalhava na montadora de carros Karmann-Ghia, em São Bernardo do Campo-SP, e a mãe era diarista. Já o jovem Quirino, por volta de 1975, cursou hotelaria e gastronomia no Senac/São Paulo e trabalhou em diversos restaurantes e buffets. “Fui chefe de buffet na Lapa [em SP].”
Em 1981, aos 23 anos de idade, Quirino perdeu uma filha do primeiro relacionamento, o que o abalou bastante. Mais tarde, em um segundo relacionamento, teve cinco filhos. Porém, anos depois, a família começou a se desagregar e, quando ele tinha cerca de 35 anos de idade, nos anos 90, rendeu-se ao alcoolismo.
O início nas ruas
Alcóolico e com vínculos familiares interrompidos, tornar-se morador de rua foi uma consequência infelizmente comum nesses casos. Porém, ainda em São Paulo, Quirino teve contato com a pastoral católica liderada pelo Padre Júlio Lancellotti.
Nessa época, o morador de rua começou a tratar-se na Aliança da Misericórdia, mantida pela Igreja, e a exercer atividades em frentes de trabalho, como serviços de limpeza, realizadas em parceria da pastoral de moradores de rua do Padre Lancellotti com a então prefeita Marta Suplicy (PT).
Com essa ajuda, em poucos meses ele se livrou do alcoolismo, mas continuou sem teto. Como tinha formação em gastronomia, trabalhou como cozinheiro em albergues nos quais se abrigou.
Ele conta que nunca se envolveu com outras drogas. “Minhas drogas eram a Cavalinho e Tatuzinho [marcas de pinga].” Hoje, “o único vício, de vez em quando, é o fumo de corda na palha”.
Na sequência – e com vontade de estudar – passou a frequentar cursos do MST e do Movimento dos Sem Teto. “O MST tinha uma base no bairro Brás”, explica. Na cidade de São Paulo, Quirino viveu 8 anos morando nas ruas.
Movimentos sociais
Logo Quirino se envolveu nesses movimentos e começou a participar de ocupações de terras e imóveis abandonados. “Ocupamos a fazenda Vitória, em Presidente Prudente; e outra em Jequitaí (MG). Fui coordenador de acampamento e fiz parte de brigadas populares por moradia em Minas Gerais”, conta.
Questionado pela reportagem sobre porque não se acomodou em uma das terras ou imóveis que ocupou, Quinino respondeu: “Senti que, somente seguindo em frente com minha luta, recuperaria vínculos familiares que perdi.”
Em Minas, o ex-morador teve um terceiro relacionamento estável, do qual nasceram mais três filhos. “Em Minas também fui catador de recicláveis e voltei a participar de pastorais da Igreja.” Hoje o contato familiar mais frequente de Quirino é com um filho de 35 anos que mora em Taboão da Serra, região da Grande São Paulo.
Em Sorocaba
Já em Sorocaba, cerca de seis ou sete anos atrás, Quirino dormia debaixo de marquises no centro da cidade. “Principalmente na frente do Banco Safra e da pequena agência do Bradesco”, ambas na Rua São Bento.
No município de Sorocaba ele morou mais de três anos, quando recebeu uma casa de herança da falecida mãe e se mudou para Torre de Pedra, distante cerca de 90 km de Sorocaba, onde mantém seu trabalho de catador e sua militância em defesa de direitos aos moradores de rua.
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