Busca

Lacuna de autoridade

Há que se investigar, com o mesmo zelo devotado à fiscalização dos agentes políticos em outros governos e legislaturas, os rumores recorrentes de que os cargos de diretor de área foram paulatinamente desvirtuados, prestando-se, hoje, não apenas a barganhas com vereadores, para assegurar o apoio da Câmara, como à acomodação de apoiadores em funções que não são nem de chefia, nem de direção, nem de assessoramento

José Carlos Fineis* (Portal Porque)

Legislativo sorocabano aceitou ser colocado numa posição humilhante, ao convocar os vereadores para votarem um projeto extenso, entre outros, com menos de três dias para análise. Foto: Foguinho/Arquivo SMetal

A aprovação de projeto de lei do prefeito Rodrigo Manga (Republicanos) que criou mais 75 cargos de confiança na Prefeitura de Sorocaba – 30 dos quais de livre nomeação e, portanto, ideais para serem instrumentalizados nos esforços pela reeleição –, tornou evidente, para quem ainda não havia percebido, que:

1) Rodrigo Manga, prefeito, transformou-se em tudo aquilo que Rodrigo Manga vereador condenava enfaticamente, apenas alguns anos atrás;

2) a atual legislatura da Câmara perdeu o pudor e, ao contrário de tantas outras igualmente cooptadas pelo Executivo, sequer procura fingir alguma independência;

3) o Ministério Público Estadual, tradicionalmente zeloso na fiscalização dos atos de prefeitos e vereadores, tem deixado, nesse terreno, uma lacuna que só o próprio MP poderá preencher.

Os fatos estão ainda frescos na memória de quem acompanhou a vida política em Sorocaba de uns dez anos para cá. Mas nunca é demais lembrar alguns episódios que corroboram as constatações acima – até porque nem todos viveram essa história de perto.

A propósito de Manga, é forçoso lembrar que, enquanto vereador, ele se posicionou ferozmente, em diferentes ocasiões, contra a criação de cargos na Prefeitura. Essa postura ficou registrada em vídeo publicado no próprio canal de Manga no YouTube (link abaixo), no dia 17 de dezembro de 2019, no qual o então vereador esbravejou:

“Olha a despesa que [o projeto da Prefeitura] está criando: oito cargos de 10 mil reais! De diretor de área! Oito cargos! (…) Nós estamos falando de uma despesa de quase 1 milhão de reais em um ano!”

Eleito chefe do Executivo com a promessa de governar com eficiência e austeridade – a Prefeitura, afirmava ele, não precisa de mais cargos, e sim de “gestão” –, Manga, depois que sentou na cadeira de prefeito, já fez duas reformas administrativas, por meio das quais criou, respetivamente, 191 e 75 cargos – elevando em 60, de 49 para 109, os postos de diretor de área, cujo salário atual é de R$ 12.185,62.

Como se vê, tudo mudou. Os cargos que, pouco mais de três anos atrás, inspiravam discursos inflamados do vereador Manga na Câmara, hoje são defendidos por ele. Somados, os 60 diretores de área representam uma despesa de R$ 8,7 milhões anuais, sem contar eventuais gratificações.

Sobre a Câmara, pouco se pode acrescentar ao que já foi dito, nesta mesma coluna, acerca de ser a legislatura atual uma das mais submissas, senão a mais, que já passaram pelo Legislativo sorocabano.

Nenhum parlamento dotado de um mínimo de autonomia e consciência de sua importância no contexto de uma administração democrática aceitaria que o prefeito enviasse, como enviou, uma extensa reforma administrativa e mais outros tantos projetos numa sexta-feira à noite, e convocasse os vereadores para votá-los na segunda-feira pela manhã.

Em adendo à subserviência da maior parte dos vereadores, que, com honrosas exceções, recusam-se a exercer uma das funções mais importantes do Poder Legislativo – a de fiscalizar os atos do Executivo, tendo por baliza o bem da coletividade –, a pressa na aprovação de projetos provenientes do Executivo, sempre que o prefeito estala os dedos, sem ao menos reivindicar um prazo razoável para lê-los e saber o que estão votando, coloca os parlamentares na posição de quem, não tendo força moral para honrar o mandato, sabe-se lá por quais motivos, permite-se humilhar publicamente.

No que diz respeito ao Ministério Público, só se pode lamentar que, na contramão de si mesmo e de sua história, tenha-se tornado cada vez mais ausente, a ponto de não mais se ouvir falar, nem por ocasião das denúncias graves que permeiam a política sorocabana, de providências outrora frequentes, como recomendações, advertências e aberturas de inquéritos.

Custa acreditar que esse mesmo Ministério Público, há apenas seis anos, moveu uma ação civil pública para responsabilizar um prefeito – José Crespo – pela criação de cargos de confiança, chegando ao ponto se empenhar para tornar indisponíveis, judicialmente, os bens do chefe do Executivo, a fim de ressarcir aos cofres públicos – em caso de sentença condenatória – o dinheiro gasto com os vencimentos das pessoas nomeadas.

É fato que os cargos de diretor de área escaparam da devassa feita pelo Judiciário e Ministério Público nos idos de 2016, quando o então prefeito Antônio Carlos Pannunzio e outros prefeitos pelo Brasil afora foram obrigados a extinguir dezenas de cargos de livre nomeação e a demitir aqueles que os ocupavam.

É imperioso que se esclareça, no entanto, se as funções desempenhadas hoje pelos diretores de área, na estrutura da administração pública de Sorocaba, correspondem aos mandamentos da Constituição Federal – que, como se sabe, só permite a criação de cargos em comissão para funções de direção, chefia e assessoramento –, ou se esses funcionários politicamente engajados não se tornaram uma espécie de faz-tudo nos setores, desempenhando funções técnicas que deveriam ser exclusivas dos servidores de carreira.

Há que se investigar, com o mesmo zelo devotado à fiscalização dos agentes políticos em outros governos e legislaturas, os rumores recorrentes de que os cargos de diretor de área foram paulatinamente desvirtuados, prestando-se, hoje, não apenas a barganhas com vereadores, para assegurar o apoio da Câmara, como à acomodação de apoiadores em funções que não são nem de chefia, nem de direção, nem de assessoramento.

Indícios fortes de mau uso desses cargos existem, e podem ser constatados com facilidade, por qualquer pessoa, no Portal da Transparência da Prefeitura.

De outra forma, como conceber uma secretaria com 28 funcionários (incluindo o titular da pasta) que, embora conte em seu organograma com apenas duas sessões, nas quais se desenvolvem atividades eminentemente técnicas – portanto, que deveriam ser executadas por servidores concursados –, mantém em seu quadro nada menos que cinco diretores de área, oito chefes de seção, quatro chefes de divisão e dois coordenadores de administração?

Salvo melhor juízo, esse tipo de situação está a merecer uma atenção maior do Ministério Público, e, eventualmente, um novo Termo de Ajustamento de Conduta, para assegurar que os cargos comissionados de livre nomeação sejam efetivamente de direção, chefia ou assessoramento, como preceitua a Constituição, evitando-se a simples acomodação de trabalhadores que – até por poderem ser removidos a qualquer tempo – geralmente se veem forçados, para defender seus empregos, a atuar como cabos eleitorais.

Veja também:

Vereador Manga critica projeto de criação de oito cargos de diretor de área, em dezembro de 2019 (clique aqui).

*José Carlos Fineis é editor-chefe do Portal Porque.

mais
sobre
câmara criação de cargos editorial Prefeitura de Sorocaba Rodrigo Manga
LEIA
+