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Merlin Kern e o teatro: paixão que começou aos 13 e se estendeu por toda a vida

Desde o primeiro papel, em 'Romeu e Julieta', foram 45 personagens femininos e um masculino. Para coroar, ela fundou uma companhia de teatro

Davi Deamatis (Portal Porque)

Merlin Kern em cena no monólogo ‘O abrigo da besta’: dedicação integral ao teatro e convivência com grandes nomes das artes cênicas locais. Foto: Divulgação

O primeiro encontro de Merlin Kern no palco, aos treze anos, foi com Shakespeare, em “Romeu e Julieta”. Depois de viver essa dramática história de amor, ela foi dançar jazz na escola de Mônica Minelli.

Mais tarde, voltaria à cena teatral. E teria encontro com a alma de 45 personagens mulheres: da tragédia grega de Medeia à tragédia brasileira da prostituta Neusa Sueli, aviltada, agredida e roubada por seu cafetão, o cafajeste Vado, na peça “Navalha na carne”, de Plínio Marcos ((1933-1999).

Um único papel masculino, ela interpretou no filme “Minha vida de cineasta”, de Mauro Baptistella.
Merlin é atriz, bailarina, professora, gestora cultural e fundadora da Companhia Imediata de Teatro. E agora ela vem se inspirando em Dulcineia, a formosa dama imaginária de Dom Quixote de La Mancha, que a ama.

Cervantes pôs seu anti-herói a atacar moinhos de ventos, a amar uma mulher que existe apenas em sonhos e — ainda loucamente — a tentar consertar o mundo.

Porque: “Como viver esse mundo e dele fazer um espetáculo, Merlin?”

Ela: “É preciso abrir as cortinas e enfrentar. É como na vida: ´O que ela quer da gente é coragem´, disse Guimarães Rosa — e eu estou de acordo com ele”.

Cedo, Merlin encontrou-se com sua vocação: “Estávamos em 1976 e a minha mãe, Ester Kern, advogada, resolveu fazer teatro. Ela matriculou-se num curso que estava sendo realizado pela Federação de Teatro Amador da Baixa Sorocabana (Fetabas), no auditório Pedro Salomão José, da Escola Municipal Getúlio Vargas.”

“Os professores — prossegue — eram nomes de prestígio no teatro sorocabano: Elvira Gentil, Armando Oliveira Lima e Roberto Gil Camargo. Apesar de o curso ser para adultos, eu e minha irmã, Meri, fomos levadas às aulas pela nossa mãe. Os professores consentiram que também ensaiássemos.”

O curso resultou em dois espetáculos: um infantil, do qual participou Meri. O outro foi “Romeu e Julieta”, de Shakespeare, que contou com Merlin e sua mãe. As famílias dos enamorados dessa peça eram inimigas. E isso tornava proibido o amor entre eles, o que resultaria em tragédia.

Nesse curso, Merlin conheceu atores e atrizes que viriam a se constituir em nomes relevantes do teatro sorocabano, a exemplo de Mario Persico, Ademir Feliziani, Mônica Minelli (também bailarina e diretora da escola que leva o seu nome) e Matilde Santos.

‘’A apresentação de ‘Romeu e Julieta’ lotou o teatro. Gostei da experiência, o que reafirmou a minha vocação: o palco.”

Primeiro, ela quis aprimorar-se na dança, de que gostava desde criança, quando assistia a musicais na TV e imitava os passos dos bailarinos na sala da sua casa. Por isso, foi às aulas na escola de Mônica. A mãe e a irmã não deram sequência à prática do teatro. Formada em Matemática, Meri tornou-se diretora de escola.

O retorno

Merlin fez Educação Física, deu aulas, e voltou ao teatro em 1985, atuando em “Retratos”, de Dalton Trevisan, um monólogo que estava sendo apresentado por seu amigo Zé Boca. O texto falava de várias mulheres e ela aparecia ao fundo, representando-as.

Em 1993, um amigo. Rodolfo Frizarim, a convidou para um curso de teatro no Espaço Cultural dos Metalúrgicos. “O professor era Carlos Roberto Mantovani: pelos dez anos seguintes participei de monumentais espetáculos que ele produziu.” Exemplos: “As troianas”, “O rei da vela”, “Agamenon”, “Medeia”, “Todos os rios”, “Gota d’água”, “O moço que se casou com a mulher braba”, “O umbigo do mundo” — entre outros.

“Foram espetáculos importantes para a história do teatro sorocabano. Sou feliz por ter participado deles, especialmente porque foram concebidos por Mantovani, um artista multifacetado: era diretor de teatro, ator, bailarino, dramaturgo, artista plástico e poeta. Um grande criador.”

“‘Todos os Rios’, espetáculo baseado em contos de Guimarães Rosa, foi o último a ter Merlin no elenco dirigido por Mantovani. Eu participava do conto ‘A Terceira Margem do Rio’.”

Depois que Mantovani faleceu, em maio de 2003, Merlin ficou dois anos sem fazer teatro. “Até que um dia fui assistir a uma peça dirigida por Mario Persico, que estava fazendo teatro de câmara na Fundec. Então perguntei a ele: ‘Mário, posso fazer teatro com você?’ E ele: ‘Pode.’
Fui. Por vários anos atuei em produções dirigidas por Mario, também um diretor fabuloso. Participei de “A febre”, “Do outro lado do rio”, “Concílio dos mortos” e “Compadre da morte”, dentre outros projetos do Mário.

Na carne

Após essa frutífera temporada com Mario Persico, Merlin recebeu o convite de Rodrigo Cintra, da Companhia Barracão da Vó, para interpretar uma personagem visceral: a prostituta Neusa Sueli, de “Navalha na carne”, de Plínio Marcos.

“Gostei bastante de o Rodrigo ter me convidado para fazer essa personagem, porque a Neusa Sueli não é para qualquer um. Sou grata por ele ter confiado em mim. Atuei nessa peça com dois atores habilidosos, lindos, maravilhosos em cena: Rogério Rodrigues e Vitor Takano.”

“Essa personagem me agrada profundamente. Mas creio que, hoje, com a experiência que acumulei, eu conseguiria fazer uma interpretação ainda mais intensa, melhor”, afirma.

Fanatismo religioso

Ocorreu de, em 2006, a diretora de teatro Ângela Barros ministrar um curso na Oficina Grande Otelo. “Dada a importância de Ângela, atriz e diretora sorocabana, ao teatro nacional, em razão de sua competência, eu fiz o curso com ela”, lembra Merlin.

“O curso redundou no apresentação de ‘Vereda da salvação’, do dramaturgo Jorge Andrade (1922-1984). Fiz a personagem Dolor.”

Na peça, os membros de uma comunidade paupérrima são levados a trocar a “igreja dos padres” pela Igreja do Advento da Promessa, na esperança de dias melhores, de redenção, conforme prometem os líderes dessa nova igreja.

Induzidos ao fanatismo, os convertidos à nova igreja são facilmente manipulados por seus líderes.

“Esse texto é do início da década de 1960. Mas a atualidade do tema abordado nos leva a crer que ele foi escrito ontem’’, observa Merlin.

Curtas-metragens

Merlin participou de seis filmes de curta-metragem: “A balada dos anjos e dos demônios” (2019, direção de Marcelo Domingues); “Revés de um parto” (2017, direção de Ricardo Camargo); “Um corpo no quintal” (2015, direção de Juca Mencacci); “Matrioska – Alma e sombra” (2015, direção de Adriano Sobral).

Em “Minha Vida de cineasta” ela interpretou o protagonista da história: Mauro Baptistella. E integrou o elenco do documentário “Ouvidos calados” (2017, direção de Mauro Baptistella). “Este documentário trata do suicídio e traz ao público uma importante reflexão a respeito desse fenômeno trágico, de muita ocorrência neste século”, disse Merlin.

Afetos & Arte

Logo que criou a Cia Imediata de Teatro, Merlin cuidou de levar adiante um espetáculo em homenagem a Mantovani, chamado “Uma intervenção poética para Carlos Roberto Mantovani”, com base nas poesias publicadas em dois livros dele: “Redundâncias” e “Escritos ordinários”. Um trabalho apaixonado pela defesa do oprimido, pela libertação:

“É preciso empacotar calor humano e distribuir aos menos favorecidos’’, escreveu Mantovani em Escritos Ordinários (S. Paulo: Laserprint, 2007. Poesia XIII, p. 50).

Um afilhado talentoso

Na ocasião em que foi ao curso de Mantovani, lá em 93, Merlin levou consigo a filha Melany, que ficou encantada com a experiência. A outra filha de Merlin, Laureen, enveredou por outro caminho: a música.

Ela contou aos amiguinhos que estava frequentando o curso e despertou o interesse deles, que reagiram com admiração. Um dos vizinhos, Victor Placca, então com dez anos, entusiasmou-se com a ideia e passou a frequentar as aulas, com Merlin e Melany.

Victor demonstrou talento e foi incluído por Mantovani no elenco do espetáculo “Gota d´água”. Ele teve um desempenho elevado e viria a ser incluído por Mantovani nos elencos de outras peças que se seguiram a ‘Gota d’água”.

“Foi início de uma carreira promissora. Disso tenho muito orgulho e digo ao Victor que me sinto a madrinha dele no teatro”, disse Merlin.

Ele concorda com a afirmação e diz: “De fato, Merlin se tornou uma madrinha no teatro pra mim. Hoje moro em São Paulo, onde trabalho como ator, e nada do que já pude viver no teatro seria possível se não fosse o início que ela me possibilitou.”

“Sou grato à generosidade dessa artista incrível que Merlin é. Fomos Andrômaca e Astianax, mãe e filho, em ‘Os últimos dos troianos’. Nutro profundo carinho e admiração por ela e ainda carrego o desejo de voltarmos a atuar juntos.”

Uma diretora especial

Em 2015, Merlin desenvolveu o projeto “Cenas possíveis – Monólogos rasgados”, que consistiu na apresentação de quatro textos retratando histórias distintas, que buscava enfatizar a questão da mulher no mundo contemporâneo.

Os textos foram: “O abrigo da besta”, de Maurício Toco; “Doces olhares”, de Sulei Aduan; “Carta abortada”, de Marcos Boi; e “Carmim sobre a pele”, escrito por Carina Cardoso, Lucas Faustino de Oliveira, Matheus Henrique Fagundes, Angeles Paredes Toral, Jerusa Teston. Todos esses autores haviam participado do workshop “Escrever é traduzir ideias em palavras”.

Apresentaram esses textos os atores Merlin Kern, Niany Nicoley, Caio Alquati e Renato Gomes. “Esse projeto marcou profundamente a minha vida. Porque minha filha Melany dirigiu todos os monólogos. E, portanto, me dirigiu também. E me deixou feliz”, diz Merlin.

“Celebro essa trajetória recorrendo a Jean-Paul Sartre: ´O homem não é senão o seu projeto: só existe na medida em que se realiza’.”

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