Fiz ranger as folhas de jornal
abrindo-lhes as pálpebras piscantes.
E logo
de cada fronteira distante
subiu um cheiro de pólvora
perseguindo-me até em casa.
Nestes últimos vinte anos
nada de novo há
no rugir das tempestades.
Não estamos alegres,
é certo,
mas também por que razão
haveríamos de ficar tristes?
O mar da história
é agitado.
As ameaças
e as guerras
havemos de atravessá-las,
rompê-las ao meio,
cortando-as
como uma quilha corta
as ondas.*
Vem o cheiro de fumaça e a certeza do fogo. Aquela coisa que incomoda profundamente, a tal da fumaça. Muita vez, tanto faz o mal que o fogo está causando, pois a fumaça irrita os olhos, entope as narinas e turva a mente. O fogo, não. Ele está lá longe. Longe da vista. Longe o calor e do mal que o ocasiona.
Se abro a janela, olho para fora, vejo o que está acontecendo e logo me arrependo. Com as folhas da janela fechadas eu posso passar um calor danado aqui dentro, mas o cheiro desagradável fica até suportável, com a vantagem de não ser necessário saber do fogo. Nem da fumaça, já que o olfato acaba se acostumando com seus efeitos mitigados. Sinto só meu cheiro, das minhas coisas, do meu ambiente, mesmo ele estando um pouco contaminado, porque nada vive só e separado deste mundo. No mínimo um cheirinho você vai sentir e, claro, pode fingir que ele não está lá.
Abro as páginas piscantes da internet e logo um cheiro de pólvora de fronteiras distantes se entranha e me persegue aqui dentro de casa. As ameaças e as guerras sempre estiveram aí, pois nada de novo há no rugir das tempestades nos últimos vinte anos. Ou trinta. Ou cem. Havemos de atravessá-las, como uma faca fatia uma manteiga mole.
Claro, eu sei (e é por isso mesmo que escrevo) que o improvável leitor irá imediatamente pensar na mais atual e midiática guerra: Rússia X EUA, digo, Ucrânia. Mas o que realmente motivou este texto foi a última queimada de mato que o trabalhador de um terreno vizinho resolveu fazer aqui em frente de casa. Ele, no seu parco conhecimento (ou seria eu no meu?) entende que é a melhor maneira de resolver o assunto: fogo na relva cortada.
Eu sou mais água. Fui lá e apaguei. E, com uma conversa peremptória, mas amigável, mostrei para ele que era uma queimada desnecessária, pois bastaria deixar o tempo se encarregar do mato verde, que viraria palha em poucos dias e iria sumir em poucas semanas.
Então é isso. Uma guerra, um fogo, a gente tem que apagar. A fumaça incomoda quem está longe, contamina tudo. Quem causa o incêndio, no mais das vezes, está léguas distante dos seus efeitos retardados. E quem está perto… bem, que se dane ou se vire como puder. Que mate, que morra, que sufoque ou chore.
O mundo precisa de mais água e pessoas firmes. E razoáveis.
*Vladimir Maiakóvski
Pedro Tortello é músico e produtor cultural.