Foi notícia em todo lugar: Bebel Gilberto sambou sobre a bandeira brasileira. Foi uma indignação geral, principalmente entre as tais “pessoas de bem”, os patriotas e a direita bíblica nacionalista. Entre outros comentários, anotei “deselegante”, “ridícula”, “nojenta”, “maluca”, “descontrolada” e, claro, “comunista”.
Me lembrei das obrigatórias e entediantes aulas de Educação Moral e Cívica, nos anos 70, onde, além de nos fazer decorar os nomes de todos os ministros do governo militar (o que só me serviu para reconhecer alguns algozes da nossa liberdade), o nobre professor ensinava a sacralidade dos símbolos nacionais: o hino (que cantávamos às sextas), a bandeira (que hasteávamos cantando o hino) e o brasão (na contracapa do livro que continha as letras de vários hinos). Representavam a tal pátria amada.
Era até legal. Pelo menos mais legal que decorar os nomes de Golbery, Severo Gomes, Simonsen, Shigeaki Ueki…
Contudo, meu conceito de representatividade tem mudado muito desde então. Muito sinceramente, não sei o quanto esses símbolos ainda representam esse pedaço de mundo chamado Brasil e os brasileiros que aqui co-habitam.
Senão, vejamos…
Nosso hino começa com um elogio ao grito de independência de Pedro I às margens do Ipiranga. O pobre rio Ipiranga agoniza. O grito… Bem… Alguns historiadores falam na verdade de um discurso longo e inflamado, de viés nacionalista, na busca de apoio ao governo de Pedro. Sequer foi à margem do riacho, e sim numa colina próxima… E por aí vai.
A licença poética de Osório Duque Estrada fala de uma igualdade conquistada com braço forte. Que igualdade?
O pretenso fim da escravidão no Brasil, votado em Senado e sancionado por Isabel em 1888 (último país da América a decretar essa teórica liberdade), mal completara 30 e poucos anos quando Osório, em 1922, escreveu a letra do hino. E o que se via era ainda o início de uma brutal desigualdade que chega até os dias de hoje.
A natureza que dava cores e vida ao “gigante”, o verde de nossa bandeira, arde em fogo, é derrubado por tratores e serras para dar lugar à mineração ilegal, extração de madeiras, agronegócio. Some, desaparece. E, com a natureza, os povos nativos, como os Guainazes que deram nome ao Ipiranga (ypirangy – rio de águas vermelhas, ou barrentas).
Ah, o lema da bandeira… Ordem e Progresso. Sério mesmo? Diga isso ao pessoal do tal Centrão, a quem, seja quem for, é preciso pedir a benção para governar o país. Não sem também precisar liberar generosamente orçamentos secretos e outras “secretinices”. Diga isso aos rachadistas que enriquecem à sombra das investigações engavetadas ou bloqueadas. Aos defensores de medicação inócua enquanto centenas de milhares dos filhos que “não fogem à luta” morriam numa pandemia desordenada e descontrolada…
Não. Sinceramente não vejo representados em nossos símbolos nossas gentes, nosso povo preto, o povo originário, nossos trabalhadores eternamente explorados, a periferia sem vez ou voz, os resistentes severinos norte-nordestinos. Esse sim um povo heroico, cujo brado, ainda que retumbante, nunca é ouvido. Não… Nossa bandeira não tem cara e nem sangue de Brasil. Principalmente, e ainda mais agora, depois que os tais símbolos foram cooptados pelos ultranacionalistas com camisas da CBF…
Não vou julgar o mérito, como o fizeram rapidamente os moralistas cívicos de plantão. Mas confesso que compreendo a indignação de Bebel ao pisotear o pano que hoje é muito mais uma representação deste atual momento triste de nossa história. E, descontada e hipocrisia geral, a única coisa verdadeiramente brasileira na cena de Bebel e a bandeira é…. O nosso amado samba. Esse sim, símbolo autêntico dos filhos deste solo, que ainda sonham com algum colo – ou pelo menos respeito – dessa decantada “mãe gentil”.
–
Nilson Ribeiro é psicanalista, músico, compositor, escritor e jornalista