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Enquanto preserva a memória ferroviária, associação abre espaço para a Cultura

Entre os muitos planos, além do complexo cultural, estão um Museu Permantente e um trem turístico

Davi Deamatis* (Portal Porque)

O espaço cultural da estação Paula Souza, inaugurado em novembro, conta com espaços convertidos para apresentações de artes cênicas e música. Foto: divulgação

A ferrovia serviu a importantes ciclos econômicos de Sorocaba, da segunda metade do século XIX até a primeira metade do século XX, especialmente nos períodos do algodão e da indústria têxtil.

Ao resgate e à preservação dessa parte da história é que vem se dedicando a Associação Movimento de Preservação Ferroviária do Trecho Sorocabana, que compreende os patrimônios históricos da Estrada de Ferro Sorocabana (EFS) e da Estrada Elétrica de Votorantim (EFEV).

E está reformando o complexo da antiga Estação Paula Souza, onde será instalado o Museu Ferroviário Engenheiro Calixto de Paula Souza, e vem criando espaços de cultura para atrair visitantes e fortalecer o turismo. A exemplo da parceria a Associação estabeleceu com o grupo Manto Companhia de Teatro, em novembro deste ano.

O grupo estreou num vagão que a Associação trouxe de Cariacica, no Espírito Santo, e o recuperou e o adaptou para o teatro. Em seguida a Associação montou uma sala para espetáculo, com quarenta lugares. E então o vagão se viu transformado em antessala, na qual o grupo recepciona os espectadores.

A Associação, diz seu presidente Paulo Sérgio Vieira Filho, 38, projeta a volta dos trens turísticos, já em 2023, com passeios pela rota do trem operário, até Votorantim, os quais deverão ser permanentes.

Fundada em abril de 2014, a Associação obteve, sob comodato, a Estação Paula Souza e 6,5 quilômetros de extensão da ferrovia de Votorantim. “A partir desse momento, iniciamos nossos trabalhos de resgate dos trens. Notamos que vários deles permaneciam há anos estacionados em pátios inativos, em cidades como Mairinque, Bauru e Botucatu. Desassistidos, eles sofriam a ação de vândalos, que os danificavam, e com os larápios, que deles furtavam peças para vendê-las como sucatas, por centavos.”

Paulo observa: “caso essa situação persistisse, logo não teríamos desses vagões nem sequer peças reaproveitáveis para conserto de outros. Em face dessa situação, elaboramos um projeto para cada um desses trens e os trouxemos para cá. Aqui eles são assistidos e preservados.”
Encontram-se sob os cuidados da Associação 45 trens. E há a previsão de chegada de outros em 2023. Um deles, a vapor, vem daqui a pouco, em janeiro.

Paulo lamenta: “Infelizmente algumas pessoas, e mesmo autoridades públicas, têm manifestado desgosto com alguns trens que para cá vieram, danificados, e com ferrugens. O que não é bonito, claro. Mas eles foram danificados nos pátios em que estavam antes, sem proteção, e sem que a população reagisse exigindo a preservação deles. Ao contrário, aqui eles estão sendo assistidos, e suas peças preservadas. E não há perigo de acúmulo de água, mesmo que estejam sem vidros ou sem alguma peça, pois eles são dotados de mecanismo de escoamento. Ademais, a zoonoses esteve fiscalizando os vagões e não encontrou qualquer risco.”

A Associação mantém um serviço de vigilância a fim de evitar furtos e depredações, bem como impedir que os vagões sejam utilizados por consumidores de drogas – e até por casais em busca de lugar onde possam transar, como já ocorreu algumas vezes.

Paulo entende que, de fato, o estado das ferrovias, de modo geral, em vários municípios, é feio. E que elas devem receber a atenção dos poderes públicos e das empresas responsáveis. E afirma: “Mas isso é fruto de abandono das ferrovias há mais de 25 anos, desde a privatização.”

Essa condição degradante também se verifica em Sorocaba, na antiga Fepasa, hoje privatizada. Situação que mereceu registro literário por meio da crônica “Mistérios de Minha Cidade”, do livro Sorocaba Bem Te Vi, de Celso Ribeiro, o Marvadão, que assim retratou as condições da ferrovia, em 2008:

“Olho os trilhos da estrada-de-ferro cortando minha cidade e a pergunta que apita na curva de minha cabeça: teria Sorocaba crescido tanto por causa dela? (…) Mas cadê o trem? Numa manobra do tempo, os trilhos descarrilaram, viraram dormentes criaturas paralelas. Não saem do lugar e nem se encontram num ponto futuro. De meio de transporte à barreira do trânsito. Fósseis tecnológicos na gare do esquecimento. É, o trem virou fumaça, Maria!”

Reconstrução

Com o propósito de evitar esse esquecimento – ou de que o trem vire fumaça – é que a Associação trabalha.

João de Almeida, ferroviário aposentado, filho do também ferroviário Mario de Almeida, já falecido, comenta esse trabalho de resgate: “Eu fico feliz com esse esforço. A ferrovia, seja no transporte de cargas, seja no transporte de passageiros, foi muito importante para a história de Sorocaba. Comecei na profissão aos dezessete anos. Como era tradição naquele tempo, meu pai queria muito que eu seguisse profissão dele. Daí que ingressei na ferrovia logo aos dezessete anos.”

João se lembra, também, com orgulho: “ser ferroviário dava muito prestígio, pois bastava pertencer a essa categoria para ter crédito imediato em qualquer casa comercial da cidade.”
O apito referido na crônica do Marvadão traz à lembrança de João o apito da oficina: “toda cidade ouvia pela manhã, na entrada dos funcionários no trabalho, na hora do almoço, e à tarde, no fim da jornada. Era hábito de muitas pessoas acertarem os ponteiros do relógio com base nos apitos da oficina.”

Cultura, conhecimento e preservação

Dos trens entregues aos cuidados da Associação, são restaurados, prioritariamente, aqueles que servem ao transporte de passageiros. Porque eles serão utilizados no turismo e em eventos que possam gerar renda para a Associação desenvolver seus projetos.

Três vagões que para cá vieram, em estado bem precário, foram restaurados de acordo com o formato original. E estão prontos para diferentes usos. Outros, estão sendo reabilitados.

Paulo relata a história de um casal desejoso de alugar o vagão-restaurante com a intenção de nele realizar uma festa. Porque o vagão não está totalmente restaurado, não o alugamos. Depois, sim. Será uma excelente oportunidade.

Atenta às oportunidades, a Associação “vai semeando os projetos concebidos e que – conforme disse Paulo – ainda darão mais e bons frutos à cidade. Após a conclusão da ampla reforma que estamos realizando aqui no complexo Paula Souza, vamos instalar o Museu Permanente, o trem turístico, promover variadas realizações culturais, de modo que os estudantes e os turistas tenham muitas e ricas atrações aqui. E que efetivamente a estação se torne um espaço de convivência, de cultura e de conhecimento, pois acreditamos que cultura, conhecimento e a preservação dos patrimônios andam juntas. Exemplo dessa iniciativa cultural é o citado Grupo Manto.

Emoções

Paulo Sérgio, sobrinho e bisneto de ferroviários, considera que estar na presidência da Associação é um desafio que lhe dá muito prazer em virtude de sua afinidade com esse meio de transporte. O desafio fica por conta da limitação dos recursos capazes de suportar toda a nossa demanda. “Por isso estamos sempre em busca de parcerias”.

O também filho e neto de ferroviários, Eliseu Ferreira de Campos, diz: “toda a sociedade deveria aplaudir e apoiar o trabalho da Associação.” Ele também gosta de crônicas e poesias e, por isso, escreveu:

“Não foi só puxando cargas de produtos e mercadorias de um Brasil ainda predominantemente rural que o transporte ferroviário fez história: suas locomotivas e vagões também transportaram gente, em viagens de primeira e segunda classes. De suas janelas, porém, a paisagem era igual para todos os passageiros: a de um país verdejante, ainda não ferido pelos tijolaços urbanos, nem escurecido pela industrialização que então se acelerava”.

João de Almeida rememora uma curiosidade dos trens de cargas, na década de 70: “entre as mercadorias que transportávamos, estavam as bobinas de papel usadas pelo Diário de Sorocaba, que vinham de Harmonia, no Paraná. Chegavam a esta estação e daqui seguiam de caminhão até as oficinas do jornal, na rua da Penha.”

Da ferrovia ainda há muito o que falar e mostrar. Esperamos que de fato a sociedade entenda nossas dificuldades e nos apoie nessa importante projeto que estamos desenvolvendo.

Terceira reportagem da série “Arte da Resistência”, dedicada às pessoas que criaram espaços culturais alternativos em Sorocaba, em contraponto à falta de investimentos nos espaços oficiais. Para ler as reportagens anteriores, clique nos links abaixo.

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Um dos vagões inteiramente restaurados pela associação hoje serve como espaço cênico dentro da parceria com o Grupo Manto. Foto: divulgação

 

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