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Barreiras humanitárias ou projeto higienista?

Redação Porque

O prefeito Rodrigo Manga (Republicanos) lança hoje, às 10h30, na rodoviária de Sorocaba, o programa intitulado Barreiras Humanitárias, cujos reais objetivos ainda não estão bem claros, por mais que a divulgação oficial procure embalá-los em eufemismos bonitos e que tendem a despertar a simpatia da população.

Em teoria, a intenção é identificar o público “mais vulnerável, vindo de outras cidades”, para evitar que “dependentes químicos vivam na marginalidade, como também para dar a devida assistência a essas pessoas e evitar que surjam pontos de minicracolândias” em Sorocaba, segundo as palavras do próprio prefeito.

Na prática, Manga e sua equipe tentam impedir que a população em situação de rua – que inclui, sim, dependentes químicos, mas também diversos outros perfis de excluídos – cresça e se torne um incômodo para aqueles que gostariam que Sorocaba fosse habitada apenas por gente bem-vestida e cheirosa.

A intenção das “barreiras humanitárias” havia ficado clara dias atrás, quando Manga reuniu outros quinze prefeitos da região com a intenção declarada de impedir que moradores da Cracolândia, em São Paulo, se transferissem para Sorocaba e cidades próximas. Depois disso, houve um “embelezamento” do projeto, com a adoção de uma linguagem mais adocicada, por assim dizer.

Em princípio, é desejável e necessário que o poder público desenvolva ações para auxiliar as pessoas em situação de rua. Porém, a condução dessas ações não pode prescindir de doses generosas de respeito à pessoa, compaixão e profissionalismo. E deve ser levada a efeito por profissionais que saibam lidar adequadamente com essa população, à luz da ciência, da sociologia, do estudo comportamental e das leis, como psicólogos e assistentes sociais.

Só assim, com sensibilidade, profissionalismo e respeito à vontade de cada um, é possível oferecer um horizonte verdadeiro a quem esteja em busca de uma oportunidade de reinserção social, pelo caminho do emprego, do estudo, da moradia e, quando for o caso, de tratamento para a superação da dependência química.

O que não se pode admitir é que essas ações sejam desenvolvidas de forma meramente policialesca, visando tão somente a redução a qualquer custo da população em situação de rua. E, infelizmente, neste caso, há informações alarmantes de que a ação “humanitária” da Prefeitura de Sorocaba nada mais é, na verdade, do que uma grande mobilização higienista, cujos nobres princípios enunciados são apenas um disfarce para que o poder público recuse, a estas pessoas já tão desprovidas pelas circunstâncias de suas garantias mais elementares, um direito fundamental assegurado pela Constituição a todos os brasileiros: o direito de ir e vir.

É preocupante, a propósito disso, a informação levantada com exclusividade pelo PORQUE com fontes da Prefeitura, de que o suposto programa humanitário vem sendo conduzido pelo secretário de Gabinete Central, João Alberto Corrêa Maia, amigo do prefeito Manga e ocupante de um cargo eminentemente político, que nada tem a ver com os aspectos sociais, de saúde ou econômicos inerentes à condição das pessoas em situação de rua.

Conforme o PORQUE apurou, na última quarta-feira, dia 8, às 9h, todos os funcionários da Secretaria de Cidadania (Secid) foram convocados para uma apresentação de Beto Maia, como é conhecido, a respeito do programa a ser lançado hoje – programa este desenvolvido, segundo as mesmas fontes, sem qualquer participação dos técnicos da Secid ou de outras secretarias afins, como a de Saúde.

Maia teria, então, informado sobre o funcionamento das “barreiras humanitárias”, que incluem a disposição de equipes fixas na altura do Hotel Chamonix (avenida Dom Aguirre) e na rodoviária, para abordagem das pessoas que chegam a Sorocaba, além de equipes volantes que percorrerão a cidade em busca de pessoas em situação de rua.

Um questionário destinado a detectar a origem, destino, ocupação, aspectos socioeconômicos e eventual dependência química dos que chegam foi entregue a essas equipes, com uma escala que obriga cada funcionário a assumir plantões de 24 horas a cada tantos dias, mediante acionamento por WhatsApp — já, como quase tudo no governo Manga, midiaticamente batizado de “Humanizap”.

A intenção anunciada é aplicar o questionário a “todas” as pessoas que chegam por qualquer via a Sorocaba, algo absolutamente impraticável para equipes de seis pessoas, se não for feita uma triagem, provavelmente visual, do público a ser inquirido. Uma peneira em que podem entrar – e certamente entrarão – aspectos como trajes, aparência física e outros fatores que, com toda a certeza, não são um sapato de couro, um paletó e uma gravata.

Se assim proceder, a triagem patrocinada por Manga incorrerá em três violações gravíssimas dos direitos humanos e constitucionais dos cidadãos humildes, que nem por serem pobres são menos cidadãos e gozam de menos direitos do que o prefeito, o presidente da Câmara, o comerciante mais rico da cidade ou a pessoa que mais contribui com doações para as campanhas eleitorais.

A primeira dessas violações será a discriminação, já que nem todos os ocupantes de um ônibus, por exemplo, poderão ser submetidos ao questionário. Será preciso escolher alguns. A segunda será a negação do direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem, também assegurado pela Constituição. Não existe nada escrito, nenhuma normal legal que obrigue um cidadão a responder questionários sobre sua condição ou o que quer que seja, para que lhe seja reconhecido o direito de estar onde tem o direito de estar.

Aliás, o programa municipal, ao que se sabe, não conta com uma linha sequer escrita ou publicada – e, consequentemente, com a assinatura de autoridade responsável –, até porque quem o elaborou deve saber que, caso formalizado, provavelmente entraria em conflito com as diretrizes do SUAS – Sistema Único de Assistência Social, abrindo margem para questionamentos jurídicos.

Por fim, no cerne de tudo, está o direito de transitar livremente pelas ruas do país, inscrito com todas as letras no artigo 5.o, inciso XV, da Constituição Federal, a Lei Maior brasileira, sobre a qual nenhuma postura municipal pode prevalecer: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens”.

De nossa parte, o que podemos afirmar, com a máxima disposição e responsabilidade, é isto: sem prejuízo do voto de confiança que se deve dar a todo projeto ainda a ser começado, o PORQUE estará atento, vigiando de perto a atuação dessas equipes, para assegurar que sua conduta respeite os direitos humanos e constitucionais das pessoas em situação de rua, sejam elas oriundas de Sorocaba ou de qualquer outra parte do Brasil.

Estaremos, com ajuda de nossos leitores, de olho no atos das autoridades e de seus prepostos, e caso ocorra qualquer violação de direitos, a começar pela imposição forçada de um questionário que ninguém é obrigado a responder, seremos os primeiros a denunciar e a cobrar providências enérgicas dos órgãos fiscalizadores da administração municipal.

Também queremos o melhor para Sorocaba, mas isso não inclui nenhuma política que, edulcorada com palavreado bonito, venha se mostrar higienista no dia a dia, tirando pessoas das ruas à força ou impedindo-as de estar em espaços públicos, por mais que sua simples presença possa ser incômoda para aqueles que, conhecedores do sofrimento alheio, em vez de lutar para minorá-lo, covardemente escolhem não vê-lo.

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