Um grupo de manifestantes antidemocráticos permanece em frente à base regional do Exército em Sorocaba, em Santa Rosália, exigindo que os militares promovam um golpe de Estado para evitar a posse do presidente Lula (PT), eleito nas urnas. Pelo terceiro dia consecutivo, os golpistas continuam fazendo baderna nos arredores do quartel, atrapalhando as aulas da escola Bierrenbach (leia mais) e os velórios da Ofebas (leia mais), além da vida de quem vive ou passa pelo local (leia mais).
Convocado pelo ex-secretário de Saúde do Governo Manga, o médico bolsonarista Vinícius Rodrigues (PL), o grupo golpista e seu líder podem ser presos e ter um série de problemas com a lei, já que estão cometendo crimes contra o Estado Democrático de Direito. A avaliação é de juristas e especialistas ouvidos pela repórter Géssica Brandino, da FolhaPress.
“Especialistas ouvidos pela reportagem afirmam que protestos que pedem a intervenção militar atacam a própria Constituição e não estão protegidos pelo direito à liberdade de expressão. A punição para cada conduta deve ser avaliada de forma individual. Manifestantes que exercem cargos públicos e se manifestam contra o Estado também podem responder a processos administrativos e sofrer punições específicas, a depender da carreira”, explica a repórter.
Nos atos que estão sendo realizados desde quarta-feira, dia 2, em frente ao quartel de Sorocaba, os golpistas estão pedindo abertamente que as forças armadas “salvem o Brasil”, dando um golpe militar para manter o presidente Jair Bolsonaro (PL), derrotado nas urnas, no governo federal (veja vídeo).
O PORQUE enviou perguntas sobre o ato e o posicionamento da base regional do Exército em Sorocaba, por volta das 15h desta sexta-feira, 4, mas não houve resposta dos militares até a publicação dessa reportagem, que será atualizada caso a base do Exército na cidade responda.
Criminosos
A Constituição Federal estabelece que é livre a manifestação do pensamento, mas a liberdade de expressão não é um direito absoluto. “Quando a manifestação passa a atingir algo que é considerado ilícito, o próprio Poder Judiciário vai criar as balizas e permitir essa manifestação ou não. A apologia ao nazismo e à intervenção militar violam bens jurídicos que são tutelados pelo Estado e que devem ser preservados”, diz Alexandre Wunderlich, professor de direito penal da PUC-RS e autor do livro “Crime político, segurança nacional e terrorismo”.
Aqueles que participaram de atos com bandeiras golpistas podem responder por crime de incitação, previsto pelo Código Penal, com pena de detenção de até seis meses ou multa. A lei do Estado Democrático de Direito — sancionada em 2021 para substituir a Lei de Segurança Nacional, da ditadura militar — acrescentou que quem incita, publicamente, animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes e instituições também responde pelo crime.
“Quando se vai defronte a um quartel pedindo aos militares para intervir em um governo civil, claramente está se ferindo esse artigo. Além disso, a organização e o planejamento dos atos também configuram o delito de organização criminosa”, afirma Diego Nunes, professor de história do direito penal da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).
Além desse delito, a nova legislação trouxe outras modalidades de crime, entre elas o de abolição violenta do Estado. O delito é caracterizado pelo uso de violência ou grave ameaça para impedir ou restringir o exercício dos Poderes constitucionais. A pena pode chegar a oito anos de prisão, além da punição correspondente à violência praticada.
Para Lênio Streck, professor da Unisinos (RS) e um dos autores da nova lei, o artigo pode ser aplicado contra quem organizou e/ou financiou os atos nos quartéis e rodovias. “Todas as pessoas que fecham estradas tinham o nítido objetivo de derrubar as instituições, pedir intervenção militar e contestar o resultado legítimo das urnas. Elas queriam um golpe de Estado”, diz. “As manifestações [desta semana] não têm nenhum propósito social. Elas têm o objetivo de tumultuar, fazer locaute e gerar o caos e convulsão social para ruir o próprio sistema político”, completa o professor.
O artigo 142 da Constituição
O dispositivo da Constituição estabelece o papel das Forças Armadas no país e diz que elas estão destinadas “à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”. O último trecho do artigo passou a ser usado em 2020 por extremistas bolsonaristas que pediam a intervenção dos militares no país diante das restrições da pandemia de covid-19. A tese é rejeitada por instituições como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a Câmara dos Deputados.
Manifestantes que usam esse artigo para pedir a intervenção podem responder pelo delito de incitação, diz Joana Machado, professora de direito constitucional da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora). “Há uma mobilização da Constituição e uma tentativa de construção de um verniz jurídico para legitimar a tentativa de golpe”, afirma.
Para Chiavelli Falavigno, professora de direito penal e de processo penal da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), essa postura é resultado da falta de construção de memória sobre o período da ditadura militar e do julgamento das arbitrariedades cometidas à época. “Estamos pagando por essas transições feitas na forma de acordo. O pedido de intervenção é um tipo de demanda de um povo que não conhece a história do seu país, os dados da própria realidade”, diz.
O que é intervenção federal?
A Constituição estabelece as hipóteses em que a União pode intervir nos Estados e no Distrito Federal. Entre os exemplos, estão a manutenção da integridade nacional, encerrar grave comprometimento da ordem pública e assegurar princípios constitucionais. Não há previsão de intervenção para contestar o resultado das eleições.
A professora de direito Constitucional da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) Carolina Cyrillo explica que não há nenhuma relação com o que é dito pelos manifestantes. Ela acrescenta que as regras da intervenção também são aprovadas pelo Congresso Nacional. “Estão confundindo com a intervenção de um Poder no outro, o que não está previsto em lugar nenhum”, afirma, acrescentando que assim como o uso do artigo 142, o pedido dos bolsonaristas não tem fundamento.